Em meados do sĂ©culo 20, começaram a circular na antiga UniĂ£o SoviĂ©tica vĂ¡rios livros mimeografados questionando o sistema polĂtico. Seus autores jamais ganharam um centavo de direitos autorais.
Pelo contrĂ¡rio: foram perseguidos, desmoralizados na imprensa oficial, exilados para os famosos gulags na SibĂ©ria. Mesmo assim, continuaram escrevendo.
Por quĂª? Porque precisavam dividir o que sentiam. Dos Evangelhos aos manifestos polĂticos, a literatura permitiu que ideias pudessem viajar e, eventualmente, transformar o mundo.
Nada contra ganhar dinheiro com livros: eu vivo disso. Mas o que ocorre no presente? A indĂºstria se mobiliza para aprovar leis contra a "pirataria intelectual". Dependendo do paĂs, o "pirata" -ou seja, aquele que estĂ¡ propagando arte na rede- poderĂ¡ terminar na cadeia.
E eu com isso? Como autor, deveria estar defendendo a "propriedade intelectual". Mas nĂ£o estou. Piratas do mundo, uni-vos e pirateiem tudo que escrevi!
A Ă©poca jurĂ¡ssica, em que uma ideia tinha dono, desapareceu para sempre. Primeiro, porque tudo que o mundo faz Ă© reciclar os mesmos quatro temas: uma histĂ³ria de amor a dois, um triĂ¢ngulo amoroso, a luta pelo poder e a narraĂ§Ă£o de uma viagem. Segundo, porque quem escreve deseja ser lido -em um jornal, em um blog, em um panfleto, em um muro.
Quanto mais escutamos uma canĂ§Ă£o no rĂ¡dio, mais temos vontade de comprar o CD. Isso funciona tambĂ©m para a literatura: quanto mais gente "piratear" um livro, melhor. Se gostou do começo, irĂ¡ comprĂ¡-lo no dia seguinte -jĂ¡ que nĂ£o hĂ¡ nada mais cansativo que ler longos textos em tela de computador.
1 - Algumas pessoas dirĂ£o: vocĂª Ă© rico o bastante para permitir que seus textos sejam divulgados livremente. É verdade: sou rico. Mas foi a vontade de ganhar dinheiro que me levou a escrever?
NĂ£o. Minha famĂlia, meus professores, todos diziam que a profissĂ£o de escritor nĂ£o tinha futuro. Comecei a escrever -e continuo escrevendo- porque me dĂ¡ prazer e porque justifica minha existĂªncia. Se dinheiro fosse o motivo, jĂ¡ podia ter parado de escrever e de aturar as invariĂ¡veis crĂticas negativas.
2 - A indĂºstria dirĂ¡: artistas nĂ£o podem sobreviver se nĂ£o forem pagos. A vantagem da internet Ă© a divulgaĂ§Ă£o gratuita do seu trabalho.
Em 1999, quando fui publicado pela primeira vez na RĂºssia (tiragem de 3.000 exemplares), o paĂs logo enfrentou uma crise de fornecimento de papel. Por acaso, descobri uma ediĂ§Ă£o "pirata" de "O Alquimista" e postei na minha pĂ¡gina. Um ano depois, a crise jĂ¡ solucionada, eu vendia 10 mil cĂ³pias.
Chegamos a 2002 com 1 milhĂ£o de cĂ³pias; hoje, tenho mais de 12 milhões de livros naquele paĂs.
Quando cruzei a RĂºssia de trem, encontrei vĂ¡rias pessoas que diziam ter tido o primeiro contato com meu trabalho por meio daquela cĂ³pia "pirata" na minha pĂ¡gina.
Hoje, mantenho o "Pirate Coelho", colocando endereços (URLs) de livros meus que estĂ£o em sites de compartilhamento de arquivos. E minhas vendagens sĂ³ fazem crescer -cerca de 140 milhões de exemplares no mundo.
Quando vocĂª come uma laranja, precisa voltar para comprar outra.
Nesse caso, faz sentido cobrar no momento da venda do produto.
No caso da arte, vocĂª nĂ£o estĂ¡ comprando papel, tinta, pincel, tela ou notas musicais, mas, sim, a ideia que nasce da combinaĂ§Ă£o desses produtos.
A "pirataria" Ă© o seu primeiro contato com o trabalho do artista.
Se a ideia for boa, vocĂª gostarĂ¡ de tĂª-la em sua casa; uma ideia consistente nĂ£o precisa de proteĂ§Ă£o.
O resto Ă© ganĂ¢ncia ou ignorĂ¢ncia.
PAULO COELHO, escritor e compositor, é membro da Academia Brasileira de Letras. É autor de, entre outros livros, "O Alquimista" e "A Bruxa de Portobello".